
O crash de 2008:
dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito[1]
(The Trillion Dollar Meltdown)
Morris, de nacionalidade americana, advogado e ex-banqueiro, em sua obra “The Trillion Dollar Meltdown”, segunda edição, esta traduzida para o português sob o título “O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito”, analisa a trajetória da economia americana em direção à sua crise, que ora assola a economia global, bem como apresenta uma agenda parcial para re-regular as finanças[2].
Afirma que, somente em 2008, os mercados entenderam que o mundo estava ameaçado por uma recessão apavorante diante da brutal escassez de crédito e acrescenta:
“Pela primeira vez, ministros das finanças se deram conta de quanto os instrumentos financeiros americanos haviam penetrado nos portfólios de investimento globais; e de até que ponto seus próprios bancos, especialmente na Europa, tinham chegado na imitação dos gigantes americanos”. (MORRIS, 2009:30/31)
Impossível não transcrever o trecho em que o Autor, de forma bastante irônica, caracteriza a crise global fabricada pelos Estados Unidos (EUA) e ressalta as paradoxais recomendações feitas por esta superpotência aos países latino-americanos e asiáticos :
“(...) uma festa regada a dívida, marcada por um excesso de bens de consumo importados e pelo pavoneamento de uma ostentosa nova classe de super-ricos que não inventara nem construíra nada, a não ser complicadas correntes de direitos no papel que pessoas obtusas tomaram por riqueza. Esses, é claro, eram os mesmos Estados Unidos que tinham pregado o tacanho “Consenso de Washington” – aumentar a poupança, equilibrar os orçamentos, obter superávits comerciais - na esteira das crises latino-americana e asiática das décadas de 1980 e
Nesta linha, alerta que no presente momento é extremamente oportuna adoção pelos EUA destas medidas severas, pregadas há muito tempo a outros países, acredita ser inevitável, para não dizer desejável, a ocorrência de um período de recessão dura, nos moldes da estagnação decenal sofrida pelo Japão, e aconselha:
“Reenergizar os empréstimos e gastos de consumo com dinheiro barato é exatamente o que não devemos fazer. O consumo tem de cair no mínimo de 4% a 5% do PIB, e o dinheiro precisa ser deslocado para poupança e investimento. O hipertrofiado setor financeiro tem de sofrer um encolhimento drástico. E precisamos reduzir a enorme quantidade de dívida em dólar existente, produzindo, pela primeira vez em muito tempo, mais do que podemos comprar – de fato, trabalhando mais intensamente e vivendo com menos recursos”. (MORRIS, 2009:42)
Morris reconhece as impossibilidades de reparação dos danos causados pela crise americana e, talvez, a de resgate da confiança global nos mercados americanos. Observa que o exercício da supremacia americana é marcado de surtos episódicos de irresponsabilidade e, ainda, esta última década caracteriza-se como a mais destrutiva de todas as demais, sendo que não só os EUA como o mundo inteiro pagarão o preço por muito tempo.
Todavia, valendo-se da teoria cíclica da política americana atribuída a Arthur Schlesinger pai[3], apresenta uma posição otimista ao crer na possibilidade de recuperação e prosperidade dos EUA, desde que as mudanças necessárias passem, no mínimo, por uma restauração razoável de regulação financeira concomitante com a quebra do dogma da Escola de Chicago, em que o governo é sempre o problema.
Neste sentido, Morris conclui que a crônica desenvolvida em seu livro sobre a amplitude do crash financeiro atual sugere que “chegamos ao ponto em que o dogmatismo de mercado é que se tornou o problema, e não a solução. E depois de um quarto de século, é hora de o pêndulo oscilar na outra direção”. (MORRIS, 2009: 224)
Para prefaciar a versão traduzida dessa obra, a escolha foi pontual e fiel: Luiz Gonzaga Belluzzo[4], grande estudioso da expansão do poder americano.
Segundo Belluzzo, a trajetória de expansão econômica americana ocorrida no século XIX, pautou-se nos seguintes pilares: inserção “virtuosa” na divisão internacional do trabalho alinhavada pela hegemonia britânica, finança doméstica desregulada, protecionismo comercial e privilégios concedidos pelo Estado aos promotores de negócio. (BELLUZZO, 2009: 11)
Nas décadas finais desse século, embora os EUA não dispusessem de uma legislação comercial adequada, os seus bancos de investimento já promoviam a fusão entre o capital industrial e a alta fiança, de tal forma que todos os setores da economia estavam submetidos ao domínio das grandes empresas.
Dessa forma, os EUA terminaram o século XIX “como a maior economia industrial do planeta, tornando-se um poderoso competidor nos mercados mundiais de alimentos, matérias-primas e manufaturados” e, ainda assim, como protagonizantes de frequentes e severas crises financeiras e cambiais, decorrentes do posicionamento de subordinação do dólar, da precariedade institucional de seus sistemas bancários e das práticas arriscadas e especulativas dos bancos de investimento na promoção dos negócios.
Essas práticas financeiras especulativas e os reiterados momentos de deflação de preços implicaram surtos violentos de centralização do capital, de maneira que consolidou uma face “moderna” do sistema econômico, o “capitalismo trustificado” marcado pelo surgimento e desenvolvimento da grande corporação americana e, posteriormente, pelo desdobramento transnacional do grande capital.
Nesta seara, aparece, inclusive, um novo patamar de estratificação da sociedade, formado pela “classe financeira”, em que os grandes bancos passaram a deter um “poder crescente no manejo estratégico das relações internas e externas da economia”.
Já na virada do século XX, diante da expansão contínua dos lucros excedentes, os EUA observaram a necessidade de buscar mercados externos, não só para difundir as suas mercadorias, como também viabilizar a internacionalização do capital, por meio de investimentos diretos e exportação “financeira”, sendo este fenômeno decorrente da estrutura da grande empresa e apto a condensar todos os mecanismos interiores de expansão.
Todavia, essa “Era Progressiva” vivenciada pelos EUA, encontrou como contraponto um momento de “rebelião democrática” representado pelos movimentos “populistas”, que visavam a: “limitar o poder do big bussiness, tornar o sistema político mais representativo e ampliar o papel do governo na proteção do interesse público e na melhoria das péssimas condições sociais de pobreza”. (CASHMAN apud BELLUZZO, 2009:13).
O New Deal, ao retomar e aprofundar estas reivindicações, também representou “uma fratura entre a classe financeira de Wall Street e as novas grandes empresas industriais fortemente atingidas pela depressão dos anos 30.
As décadas iniciais do século XX foram marcadas por uma estratégia de recuperação social e econômica, na Europa e nos EUA, frente à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.
No âmbito da finança e do crédito, “as desordens do entreguerras estimularam a imposição de regras de bom comportamento aos bancos e às demais instituições financeiras” e a palavra de ordem foi a regulamentação financeira, muito próxima da noção keynesiana de “moeda administrada”.
Esse momento histórico, marcado pela “repressão financeira”, foi capaz de evitar os desequilíbrios dos ciclos econômicos tão comuns no modo de ser capitalista, além de apresentar “grande capacidade de recompor as dívidas entre as empresas e os bancos e flexibilidade no que diz respeito ao acesso à liquidez junto ao banco central”. (BELLUZZO, 2009: 15)
Por conseguinte, a “repressão financeira”, ocorrida concomitantemente ao forte movimento de internacionalização da corporação produtiva americana, suscitou a resposta competitiva da Europa e do Japão nos mercados americanos.
No final da década de 1960, surgiram indícios de desorganização no sistema de regulação de Bretton Woods, que, na década seguinte, determinou o enfraquecimento da supremacia do dólar para transações e como reserva.
Ainda, estagflação se instala na economia americana em meados da década de 1970 e os conservadores monetaristas veem nesta conjuntura “um pretexto para condenar peremptoriamente as incursões dos governos no sagrado território do livre mercado”. (BELLUZZO, 2009: 10)
Diante do risco à liderança industrial e financeira dos EUA, no âmbito da concorrência global, a reação americana foi de elevação unilateral das taxas de juro (1979), com o propósito de revalorizar a sua moeda.
Embora a defesa do dólar tenha debilitado a indústria manufatureira americana, ao mesmo tempo, “deu novo vigor à expansão externa da grande empresa americana, além de restaurar a centralidade de Wall Street como praça financeira global”. (BELLUZZO, 2009: 16)
A partir dos nos anos 80, foi recuperada a soberania monetária americana e a integração financeira promovida pelos EUA, nas últimas três décadas, não teve precedentes. Nesse sentido, Belluzo aduz que “a prerrogativa de administrar a moeda-reserva conferiu aos Estados Unidos o privilégio de abrigar os mercados de dívida e de direitos de propriedade mais líquidos e profundos da cadeia de inter-relações financeiras”. (BELLUZZO, 2009:17)
Ainda, no que tange à supremacia americana e à supremacia dos mercados financeiros desregulados, Belluzzo pontua que essas “não só agravaram a chamada assimetria do ajustamento entre os Estados Unidos e seus súditos emergentes, como desencadearam uma sucessão de crises parciais no mercado dominante”[5]. (BELLUZZO, 2009:17)
Ao lançar um olhar panorâmico sobre essas crises e as respectivas medidas de contenção/recuperação, Belluzo destaca que em todas estavam presentes “(...) os riscos implícitos na globalização, sob comando do dólar e da finança desregulamentada.” (BELLUZZO, 2009:21)
Na década de 2000, claramente se verificou a construção de um espaço monetário conflitivo (EUA x Ásia x Europa), decorrente da hegemonia americana e seu enorme mercado nacional e que acarretou, inclusive, a “separação” entre o consumo e o investimento. A criação de uma nova capacidade produtiva manufatureira passou a ser liderada pela Ásia[6], enquanto a expansão do consumo concentrou-se, principalmente, nos EUA.
Nos últimos cinco anos anteriores à eclosão da recente crise financeira, o consumo das famílias americanas passou a não mais depender da evolução da renda, particularmente dos salários e dos empregos, e, sim, do “efeito-riqueza” e do endividamento. Em outras palavras, “o circuito de valorização da riqueza-crédito-consumo criava poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda, ao mesmo tempo em que as aprisionava no ciclo infernal do endividamento crescente”. (BELLUZZO, 2009:22)
Nesse contexto, no mundo comandado pela dinâmica dos mercados da riqueza, duas categorias sociais se predominaram: os credores líquidos e os dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento. Estes, “permanentemente ameaçados pelo desemprego e obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência” e, aqueles, “consumidores de luxo” diante da “apropriação de frações cada vez mais gordas da valorização dos ativos reais”. (BELLUZZO, 2009:23)
As alterações ocorridas ao longo das três últimas décadas, não só na estrutura da riqueza capitalista, como também na operação dos mercados financeiros, ampliou a complexidade da trajetória das economias e da contradição da gestão dos bancos centrais.
Em síntese, essas alterações “permitiram maior fluidez nas transações, estimularam a securitização gananciosa e “alavancagem imprudente”, o que repercutiu em uma crise de liquidez atingindo o conjunto do sistema bancário. Assim, sem a mão invisível do governo e diante da ausência de socorro tempestivo, os bancos entregaram-se ao desespero da desespero da desalavancagem coletiva, “levando à contração do crédito, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária”. (BELLUZZO, 2009:27/28)
Nestas circunstâncias, Belluzzo entende ser necessário que os bancos centrais, como autoridades monetárias e representantes do interesse coletivo, garantam a abundante liquidez para os mercados em crise e alerta que a tentativa americana de reduzir o déficit externos pode ser desastrosa.
BELUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Prefácio. In: MORRIS, Charles R. O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009. p. 9-29.
MORRIS, Charles R. O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009. 254p.
[1] MORRIS, Charles R. O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009. 254p.
[2] Para compreensão dessa agenda e suas prioridades específicas, recomenda-se a leitura do último capítulo, qual seja, “Recuperando o equilíbrio” da presente obra de Morris.
[3] Segundo Morris, essa teoria representa que “o consenso político-econômico tende a oscilar entre os ciclos liberais e conservadores em arcos de mais ou menos 25 anos”. (MORRIS, 2009:45)
[4] Luiz Gonzaga Belluzzo, dentre outras atribuições, é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e da FACAMP e conselheiro editorial da revista Carta Capital. Como autor, destacam-se as suas participações na obra coletiva “O poder americano”, organizado por J.L.C. Fiori, bem como “O abc da Crise”, organizado por Sérgio Sister.
[5] Para compreensão específica dessa sucessão de crises a que Belluzo se refere, recomenda-se a leitura do prefácio do livro “O crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati, 2009. p. 17-23.
[6] Vale destacar que o progresso da desregulamentação financeira comandada por Wall Street foi essencial para a metástase produtiva asiática, ocorrida principalmente nas décadas de 1980/90, em que se presenciou um cataclismo na divisão internacional do trabalho. No território dos asiáticos, de mão-de-obra barata, câmbio desvalorizado e abundância de investimento estrangeiro, são produzidas as novas manufaturas.
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