A Lei Federal n. 11.340, de 7 de Agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nomeada de "Lei Maria da Penha", trouxe consigo essencial e excepcional providência cautelar, a repercutir no âmbito das relações de trabalho e seguridade social.
Dispõe o Art. 9o, Parágrafo 2o, Inciso II, desse Estatuto Protetivo da Mulher o seguinte:
"Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
(...)
§
2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
(...)
II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses".
De uma leitura aplicada desse insigne, porém adormecido, dispositivo legal citado, vislumbra-se a instituição, em favor da mulher em situação de violência doméstica ou familiar (da vítima), de mais um principiante caso legalmente tipificado de interrupção do contrato de trabalho e, também, de estabilidade provisória no emprego.
A utilização da expressão "manutenção do vínculo trabalhista" é completa e certeira. A indicar que além da sustação temporária da prestação de trabalho e disponibilidade perante o empregador, será garantido à trabalhadora, vítima da violência doméstica e familiar, a preservação da plena vigência e eficácia de todas as cláusulas proveitosas do contrato de trabalho, até quando se fizer necessário seu afastamento.
A hipótese estampada no Inciso II, Parágrafo 2o, do Art. 9o, da Lei Maria da Penha vem a se unir aos casos clássicos de suspensão e interrupção do pacto laboral (cessação temporária) e de estabilidade provisória (garantias de emprego), previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na Constituição Federal de 1988 e demais leis extravagantes.
A Lei Maria da Penha, norma ordinária federal, é espécie legislativa boa para o caso, adequada mesmo. Competindo privativamente à União legislar sobre direito processual e do trabalho (Art. 22, Inciso I, da CF/88) e, concorrentemente com os Estados, sobre previdência social, proteção e defesa da saúde (Art. 24, Inciso XII), estabelecendo o Ente Federal maior normas básicas gerais. O Art. 196 da Lex Maxima, igualmente, preconiza competir ao Poder Público, "nos termos da lei" – leia-se, Lei Ordinária – , organizar a Seguridade Social, destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Por sua vez, o Art. 7o, desse mesmo Diploma Magno, dentro do Capítulo que trata dos Direitos Sociais, estabelece que são bem-vindos todos os direitos de trabalhadores urbanos e rurais, produzidos pelo legislador, que visem frontalmente "à melhoria de sua condição social", quando emprega a locução "além de outros [direitos]" em seu caput.
É valioso ressaltar que não se pode se conceber como excêntrica ou desajeitada, a fixação desse instituto assecuratório da manutenção do vínculo trabalhista, no corpo da Lei Maria da Penha, em razão de sua suposta vocação penal e processual penal. Ora, a Lei 11.340/2006 é Diploma híbrido, assim como o é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que possuem disposições cíveis, penais e administrativas, sem nenhuma pecha de inconstitucionalidade ou ilegalidade. De outro lado, a atribuição do juízo processante pela Lei 11.340/2006 é ampla, porque os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, como já sedimentado na mais vanguardista doutrina, possuem competência cível (extrapenal) e criminal (Art. 14 da Lei 11.340/2006), e, aonde ainda – lamentavelmente – não instalados, as Varas Criminais acumularão essas amplas competências para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A manutenção do vínculo trabalhista em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, como sinalizado pela própria Lei 11.340/2006, só poderá ser decretada pelo Juiz (reserva de jurisdição). Implicando dizer, assim, que se fará imperioso para deflagração da benesse assecuratória da propositura de procedimento judicial prévio ou instauração de expediente policial apartado (Art. 12, Inciso III, da Lei 11.340/2006), para provocação do Poder Judiciário (nemo iudex sine actore). Salientando que o benefício legal tanto poderá ser veiculado em uma ação penal, para apuração de crime ou contravenção, como em uma ação cível em geral, como de separação litigiosa, divórcio direito, alimentos, indenização etc. O texto da Lei, abrangente, é claro ao se referir a "mulher em situação de violência doméstica e familiar", e não "mulher vítima de infração penal", o que descarta a possibilidade de aplicação do instituto da manutenção do vínculo trabalhista apenas para os casos de responsabilidade penal.
A formalização do pedido de manutenção do vínculo trabalhista tanto poderá ser requerida na fase investigatória policial, mediante o expediente apartado dirigido ao Juiz, com o pedido da ofendida para sua concessão, ou mesmo após o oferecimento da denúncia, através de pedido verbal da ofendida que será tomado a termo, ou através de requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública (Arts. 12, Parágrafo 1o, Inciso III, 19, caput e 28 da Lei 11.340/2006).
Tratando-se de ação cível o pedido de conservação do vínculo laboral tanto poderá ser requerido através de ação cautelar incidental ou preparatória, conforme o caso. Sendo defeso sua formulação através de pedido de tutela antecipada de que cuida o Art. 273 do CPC, uma vez que trata-se a benesse genuinamente de procedimento de natureza cautelar, que visa preservar a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar. O que por certo não impedirá, em caso de equívoco do Defensor Público ou Advogado da parte, do manejo pelo Juiz da causa da regra da fungibilidade entre a tutela cautelar e a antecipada (Parágrafo 7o, do Art. 273, do CPC), deferindo a providência cautelar em caráter incidental ao processo ajuizado se puderem ou houverem sido formulados outros pedidos de natureza principal, ou deferindo a providência cautelar como medida preparatória. Sendo que, aí, neste último caso, determinado-se à parte que respeite o trintídio legal para ajuizamento da demanda principal, sob pena de cessação de eficácia da medida cautelar (Arts. 806 e 808, Inciso I, do CPC).
A formulação, na ação cível, de pedido principal veiculando a manutenção do vínculo trabalhista desnatura o caráter acessório e instrumental desse instituto protetivo de urgência, ocasionando indesejada usurpação da competência da Justiça do Trabalho, responsável esta pelo processo e julgamento de ações oriundas da relação de trabalho. A cessação temporária do contrato de trabalho e a garantia de emprego devem ser tomadas como uma questão secundária, que incide sobre o processo principal, merecendo solução antes da decisão da causa ser proferida.
Outro requisito para o êxito da manutenção cautelar do vínculo trabalhista, por evidente, será a demonstração pela mulher de que encontra-se em situação de violência doméstica e familiar. Não nos moldes exigidos pelo Art. 333 do CPC ou Art. 156 do CPP, para um juízo meritório definitivo e exauriente da lide, mas, sim, dentro dos limites estabelecidos para concessão da medidas cautelares em geral. Bastando à mulher a demonstração da probabilidade da existência do direito afirmado (fumus boni iuris) e o fundado receio de que sua integridade física e psicológica sofra dano irreparável ou de difícil reparação, por ato do agressor, e em razão da natural demora da solução do processo (periculum in mora).
A manutenção do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar fica condicionada à necessidade da preservação de sua integridade física e psicológica. Assim, se o suposto agressor, no transcorrer da lide, não estiver investindo contra a vítima, ou estiver cumprindo à risca e com fidelidade todas as medidas protetivas de urgência deferidas, ou mesmo se estiver preso em flagrante ou preventivamente, é indevida a concessão da cautelar de manutenção da relação de emprego, em razão da ausência de iminência de risco à integridade física ou psicológica da ofendida.
Outrossim, para decretação cautelar da manutenção do vínculo trabalhista deve ser verificado pelo Juiz se o afastamento do local de trabalho pela mulher se faz necessário, recomendável. Pelo que, mesmo se o suposto agressor estiver no encalço da mulher, descumprindo parcialmente algumas das medidas protetivas de urgência, ou mesmo caso tenha se evadido da prisão para local incerto, será necessário, mesmo assim, que fique evidenciado que o acusado está rondando as imediações do local de trabalho da vítima, ou seja, que o ambiente de trabalho da ofendida possa se constituir em verdadeiro alçapão ou tabuleiro para a reiteração criminosa, em abalo da ordem pública. Acaso restar incólume o desenvolvimento da atividade laborativa pela mulher, em seu local de trabalho, deixando o suposto agressor a vítima em paz neste recinto, certo abalo psicológico ou moral desta poderá ser elemento para o êxito da causa principal, mas não se constituirá em motivo para decretação da cautelar de manutenção do vínculo trabalhista, por falta de interesse jurídico na medida. O mesmo pode acontecer com aquelas vítimas que exerçam atividade laborativa externa incompatível com a fixação de horário de trabalho ou que o ambiente de trabalho se revele fortaleza inexpugnável pelo agressor, como acontece, p. ex., no caso das aeronautas que trabalham a bordo de aeronaves, contanto que seu algoz também não seja tripulante da mesma.
O Inciso II, do Parágrafo 2o, do Art. 9o, da Lei Maria da Penha parece ter sido inspirado sob forte e otimista influência do Princípio da Razoável Duração do Processo, insculpido no novel Inciso LXXVIII, do Art. 5o, da Carta de 1988, ao prescrever limite máximo de 6 (seis) meses para subsistência da cautelar da manutenção do vínculo trabalhista, sem expressa previsão da possibilidade de prorrogação da medida. Lapso reanimado, também, pelas recentes alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei 11.719/2008, que prevê prazo de 60 (sessenta) e 30 (trinta) dias para realização da audiência de instrução e julgamento para as causas referentes aos processos comum e sumário, respectivamente.
Acontece que acaso não encerrado o feito principal em 6 (seis) meses, e ainda persistirem os motivos ensejadores da manutenção cautelar do vínculo trabalhista, com a séria e fundada possibilidade de comprometimento da integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, parece óbvio que a medida acauteladora deva ser prorrogada, quantas vezes parecer necessário e suficiente para manutenção da ordem pública, evitando-se, assim, a possibilidade de reiteração criminosa por parte do agente.
Não se pode olvidar, por importante, que o deferimento das tradicionais medidas protetivas de urgência elencadas nos Arts. 22 e 23 da Lei 11.340/2006, e o seu pontual e efetivo cumprimento, notadamente as de afastamento do lar e de proibição de aproximação da ofendida e de seus familiares, ou mesmo a decretação da segregação provisória do indiciado ou acusado, muitas das vezes podem se revelar medidas inócuas, de nenhum efeito, a dispensar a medida extrema da manutenção do vínculo trabalhista.
Muito interessante a abordagem do autor e parece-me que o Estado deve arcar com o ônus decorrente deste decisium, tendo em vista que é dever do Estado garantir a segurança, vida digna, etc...