Por uma Carta Socio-Laboral protetiva da dignidade dos trabalhadores
O jurista argentino, Luís Enrique Ramires, Vice-Presidente da ALAL - Associação Latino-Americana de Advogados Trabalhistas participou em Porto Alegre do FSM 2010,defendendo a proposta da entidade pela construção de uma sociedade plural, sem fronteiras, assegurando-se aos trabalhadores a livre circulação, com direitos recíprocos assegurados, laborais e previdenciários.
Assim foi a manifestação:
A INTEGRAÇÃO LATINOAMERICANA COMO RESPOSTA À GLOBALIZAÇÃO E À CRISE CAPITALISTA
(
*) Luis Enrique Ramírez
A 23 de outubro do ano passado, os advogados trabalhistas latino-americanos aprovaram por aclamação a chamada “Declaração do México”, propondo ao movimento sindical e aos governos da região a sanção de uma “Carta Sociolaboral Latinoamericana”.
Nesse documento descrevia-se de maneira nua e crua a crise do sistema capitalista, não pela tentativa de resgate de bancos e empresas mediante a transferência de bilhões de dólares das arcas estatais para os grupos financeiros, mas, entre outras coisas, pelo bilhão de seres humanos que padecem fome e desnutrição no mundo.
Nessa oportunidade, os advogados trabalhistas diziam que a verdadeira crise da atual ordem social e econômica mundial, é a tremenda desigualdade que ela gerou, levando à pobreza e à marginalização enormes setores sociais, e até países e regiões inteiras do planeta. Situação esta que se vê agravada pela despudorada ostentação de riqueza que fazem as minorias privilegiadas, conforme as regras de uma sociedade materialista, consumista e insolidária.
Com efeito, a humanidade está passando por uma crise planetária, porém, não como conseqüência de fatos inevitáveis da natureza, mas como resultado de uma situação catastrófica provocada pela ciência a serviço do capitalismo, num caminho que nos está levando a um beco sem saída. À degradação humana da dominação e da exploração, temos que acrescentar a degradação ecológica do planeta.
Por isso, esta crise não é outra crise cíclica do capitalismo. Não: ela é uma crise de civilização que põe em questão os próprios alicerces do sistema. Enquanto os setores sociais dominantes pretendem avançar pelo mesmo caminho, com a mesma lógica e a mesma racionalidade, os advogados trabalhistas propõem pensar no alternativo.
Sua crua descrição da realidade não é produto do pessimismo, ou da desesperança dos excluídos, nem da tristeza dos dominados. É antes o ponto de partida para propor a nossos povos a imperiosa necessidade de construir um projeto de emancipação.
O reconhecimento da existência de um processo de globalização sem precedentes, que provoca profundas tensões no mundo do trabalho, é a base necessária para poder elaborar uma resposta partindo dos interesses populares, visto que é evidente que um capitalismo global só pode ser enfrentado com uma luta também a escala global. O internacionalismo que sugeria em seus começos o movimento sindical, deixa de ser um lema solidário para virar uma dramática necessidade estratégica desta conjuntura histórica.
De seu lugar, a Associação Latino-americana de Advogados Trabalhistas (A.L.A.L.) propõe na Declaração do México passar do plano da retórica e a declamação, à adoção dos cursos de ação necessários para atingir uma efetiva integração latino-americana.
Este processo encontra seu sustento em dois dados fundamentais. Em primeiro lugar, os trabalhadores e sua absoluta identidade de interesses e, em segundo lugar, uma região do planeta que apresenta características únicas para concretizar esta integração. A América Latina tem:
• Uma origem ibérica em comum;
• Línguas idênticas ou semelhantes;
• Predomínio de uma mesma religião;
• Idênticas correntes migratórias; e
• Uma história política similar.
A isto deve se acrescentar, na atual conjuntura, um cenário político que dificilmente possa se repetir, com a presença de governos populares e progressistas em muitos dos países da região.
A integração que propõe a A.L.A.L. não se reduz à criação de um bloco econômico regional, mas a uma integração que consiga superar essa visão mercantilista que se limita a discutir taxas ou a eliminação de barreiras alfandegárias.
Propõe-se uma integração que tome conta de tudo o que identifica e une os povos da América Latina, cujo destino comum é indiscutível. O que está em questão é, quem é que traçará esse destino. Será projetado pelos interesses vinculados ao capital transnacional, como historicamente tem acontecido, o por nós. Bem simples.
Trata-se, então, de rejeitar os projetos de uma mera unidade regional econômica, que com certeza nos leva a um capitalismo dependente, e propor uma autêntica integração social, política e cultural, cujo desenho e execução seja realizado com a participação de todos os setores sociais e, em particular, dos trabalhadores.
Os advogados trabalhistas latinoamericanos postulam, portanto, que o primeiro passo desse processo de integração seja a aprovação de uma Carta Sociolaboral Latinoamericana, que estabeleça um patamar comum e inderrogável de direitos de trabalho.
Esse patamar deveria ser como uma barreira infranqueável para as permanentes tentativas do neoliberalismo de destruir os direitos e as conquistas sociais dos trabalhadores. A Carta Sociolaboral Latino-americana atuará como legislação supranacional, à qual deverá se ajustar o direito interno de cada país. Ela conterá normas plenamente operativas e diretamente aplicáveis, baixando à realidade muitos direitos e garantias que já existem em nossas Constituições, mas que carecem de efetividade. Além disso, desalentará o dumping social e a especulação dos capitais que procuram vantagens competitivas, transferindo-se para aqueles países que oferecem uma mão-de-obra barata, como hoje acontece com o Peru e a Colômbia.
No entanto, não se trata apenas de estabelecer uma trincheira defensiva. Os advogados trabalhistas propõem algo muito mais ambicioso: a construção de um novo paradigma de relações de trabalho frente ao século XXI.
A Declaração do México da A.L.A.L. desenvolve em vinte pontos os principais direitos e garantias que deveria conter a Carta Sociolaboral Latinoamericana, que poderiam ser resumidos nos seguintes princípios fundamentais:
• Livre circulação e radicação dos trabalhadores no espaço comunitário, com igualdade de direitos e sem discriminação por nacionalidade.
• Direito a um trabalho decente e com estabilidade funcional, salvo ocorrência de comprovada justa causa.
• Democratização das relações de trabalho, de forma tal que o trabalhador, cidadão na sociedade, também o seja na empresa.
• A Previdência Social deve ser responsabilidade indelegável do Estado, sendo proibida a participação de operadores que atuem com fim de lucro.
• Direito à organização sindical livre e democrática.
• Direito à negociação coletiva e à greve, sem restrições regulamentares.
• Direito a uma Justiça de Trabalho especializada que, com celeridade, permita fazer efetivos os direitos dos trabalhadores.
Sendo todos estes direitos e garantias muito importantes, gostaria de salientar um que considero fundamental, porque é um direito sem o qual os outros passam a ser letra morta: o direito ao trabalho.
Tenho dito sempre que este é um dos direitos que integram a própria base de uma sorte de Pacto Social, não escrito mas claramente assumido pelos atores sociais, mediante o qual o movimento sindical abre mão de sua histórica pretensão de substituir o sistema capitalista.
Um sistema que divide a sociedade en dois setores. Um minoritário e titular dos meios de produção, e outro majoritário que conta apenas com sua capacidade de trabalho, a qual deve alienar para o primeiro para poder subsistir.
Não é muito difícil imaginar quais podem ter sido as promessas que os capitalistas fizeram aos trabalhadores para eles renunciarem a sua intenção de substituir a ordem social vigente. É claro que aqueles prometeram direito ao trabalho e a uma remuneração justa, já que somente estes direitos permitem satisfazer as necessidades vitais dos trabalhadores e de suas famílias.
É impensável que o movimento sindical tenha abandonado seus duros questionamentos ao sistema capitalista e sua originária intenção de destruí-lo, se não tivessem sido garantidos aos trabalhadores emprego e justa remuneração.
E continuando nesta linha de raciocínios, podemos afirmar que um direito de importância semelhante, que constitui uma das bases do Contrato Social que sustenta o sistema capitalista, teve que ser reconhecido num âmbito de continuidade e segurança. Em outras palavras, de estabilidade.
Porque para que o movimento sindical aceite que a satisfação das necessidades do trabalhador só se atinge através do trabalho assalariado, é lógico supor que ele teve que demandar mecanismos de segurança para garantir o direito ao trabalho. A incorporação deste direito nos textos constitucionais só pode ser interpretada como uma resposta a essa demanda.
Se a tudo isto for acrescentado que a estabilidade laboral é, de fato, uma condição para o exercício dos demais direitos laborais —já que aquele que tem uma inserção precária na empresa tem escassas possibilidades de defendê-los— então chegaremos à conclusão de que aquele Contrato Social teve que garantir aos trabalhadores, não só direito a um emprego, mas também direito a um emprego estável.
Na ordem social e econômica vigente, a estabilidade laboral é uma exigência da natureza humana. Ela representa para o trabalhador a única possibilidade de ter um projeto de vida, isto é, poder pensar no futuro a partir de uma base estável, de maneira tal que a satisfação de necessidades ainda não cumpridas se refira a um amanhã sentido como esperança.
Por isso, o direito ao trabalho, reconhecido por inumeráveis tratados internacionais, é um direito humano fundamental e deve ser intensamente tutelado. Esta proteção deve funcionar tanto frente ao Estado, como frente aos particulares.
Esta garantia significa que o Estado deve gerar políticas que permitam atingir o pleno emprego. Mas os empregadores, por sua vez, devem se abster de privar o trabalhador de seu emprego, se não mediar causa justa.
Esta nova crise do sistema capitalista, que outra vez faz recair suas consequências sobre as costas dos trabalhadores, com a destruição de empregos e a eliminação de direitos, nos faz pensar que chegou o momento de estabelecer na América Latina uma autêntica proteção contra a dispensa sem causa.
É preciso sair definitivamente dos sistemas vigentes em nossos países que sancionam a dispensa arbitrária com o pagamento de uma indenização. Esta visão puramente mercantil do valor do trabalho, que mede a demissão em termos de custos, é incompatível com o reconhecimento de que o trabalho é, na sociedade moderna, condição de cidadania. Portanto, sua perda constitui uma inadmissível degradação da condição de cidadão do trabalhador.
O direito ao trabalho está diretamente vinculado com a subsistência do trabalhador e sua família. Por conseguinte, ele está emparentado com o direito à vida, que é o primeiro dos direitos humanos fundamentais. Portanto, proteger este direito implica, necessariamente, reconhecer que o trabalhador tem o direito a não ser privado dele injustamente.
É claro que este direito pode entrar en colisão com outros direitos consagrados em nossas Constituições, como o direito de propriedade e o direito de liberdade de contratação do empregador. Porém, não há sombra de dúvida que eles têm diferente hierarquia, e a contradição entre direitos de conteúdo patrimonial e direitos humanos fundamentais, deve ser resolvida a favor destes últimos.
Resumindo: não podemos continuar denunciando as misérias do sistema capitalista, sem oferecer a nossos povos um projeto alternativo. Um passo nessa direção é começar o processo de integração latinoamericana, que é um imperativo que emana de nossas próprias raízes. Trata-se do mandato não cumprido dos heróis das lutas pela Independência.
Desde o mundo do trabalho, um bom começo seria estabelecer para todos os trabalhadores latinoamericanos um corpo de direitos de trabalho fundamentais, plenamente operativo e diretamente aplicável, como a Carta Sociolaboral Latinoamericana que propõe a A.L.A.L.
Parece uma utopia, um sonho. No entanto, como bem disse Don Quixote: “O sonho de um é apenas um sonho. O sonho de muitos é o começo da realidade”. E este Fórum Social Mundial nos convida a sonhar.
Porto Alegre, 26 de janeiro de 2010
(*) Luis Enrique Ramírez é advogado trabalhista na Argentina e Vice-Presidente Ejecutivo da ALAL – Associação Latino-America de Advogados Laboralistas
Fonte: ABRAT
http://www.fazer.com.br/layouts/abrat/default2.asp?cod_materia=2811
Mais informações sobre o FSM: http://fsm10.procempa.com.br/wordpress/